Santíssimo, Jesus atravessou um grande mar de sofrimentos de toda espécie. Portanto, o sofrimento não pode ser consequência de pecado pessoal. Se o fosse, que sentido teria o convite expresso por Jesus aos discípulos de tomar diariamente a cruz, ou seja, todas as circunstâncias humanas, incluídos o sofrimento e a adversidade, e segui-lo (Lc 14,27)? Conservo comigo uma frase pronunciada em dia de retiro mensal pelo meu Confrade Frei Ademar Spindeldreier, em maio de 1975, um mês e meio antes de morrer num acidente rodoviário. A frase ganha valor, porque Frei Ademar se tornara, por seu permanente estado de saúde, um verdadeiro mestre na espiritualidade do sofrimento: “Só quem não ama a Deus pode dizer que o sofrimento é crueldade”.
Maria de Nazaré, imaculada e santíssima, jamais tocada pela sombra do pecado, mergulhou no oceano do sofrimento a ponto de ser identificada como a Mãe das Dores. As raízes de seu sofrimento não estão plantadas na lama do pecado, mas na paixão de seu Filho divino. Seu sim na Anunciação encontra a plenitude de sua sinceridade e de sua grandeza aos pés da Cruz, quando o sofrimento humano da mãe alcança a amplitude do sofrimento do Filho divino e o martírio do Filho plenifica todas as medidas redentoras.
O quadro do Calvário (uma das cenas que mais provocaram místicos, santos, artistas e teólogos) ensina que o sofrimento tem forças e alcances impensáveis. Normalmente, o sofrimento é tido como tolhedor da atividade, limitativo de movimentos. No entanto, nenhum canto da terra ficou sem experimentar a força dinâmica e redentora do Crucificado. Não é, portanto, repetimos, como castigo de pecados cometidos que a Imaculada é a Mãe das Dores. Como também não é por seus méritos pessoais que se tornou Mãe de Deus. Sua conceição imaculada, sua maternidade, seu estado de “cheia de graça” (Lc 1,28), como também suas lágrimas de dor, estão inseparavelmente unidas e dependentes de seu Filho Jesus, Filho de Deus nela concebido por obra e graça do Espírito Santo (Mt 1,18). O sim da Anunciação implicou não só sua maternidade milagrosa, mas também as trevas do Calvário. Se Paulo afirma completar em seu corpo as tribulações de Cristo (Cl 1,24), o que não deveria acontecer com Maria, a mãe do Crucificado?
Quando se fala em Nossa Senhora das Dores, a imagem clássica que nos vem à mente é a da mulher com uma espada atravessada no coração. Às vezes, sete espadas. Quando se fala em Nossa Senhora da Piedade, outro título da Mãe das Dores, a figura clássica é a da Mãe com o Filho chagado e morto nos braços. Como não lembrar, nesse caso, a famosa Pietà, de alvíssimo mármore, esculpida por Miguelângelo, venerada e admirada na primeira capela lateral à direita de quem entra na Basílica de São Pedro, em Roma? Lembramos esta, mas são tantíssimas as esculturas, pinturas e poemas em todos os tempos e em todas as culturas. O mistério do sofrimento não exclui nenhum segmento social. Por mais que tenha se desenvolvido a ciência e por mais que ela tenha encontrado antídotos para a dor, o mistério do sofrimento continuará a ocupar por extenso todas as direções da história humana. Lembrou o Concílio Vaticano II: “Todas as conquistas da técnica, ainda que utilíssimas, não conseguem acalmar a angústia da criatura humana” (Gaudium et Spes, 18). As dores de Maria são parte integrante da História da Salvação, como os sofrimentos das criaturas são inseparáveis da história humana na terra.
No momento em que Maria levou o Filho ao templo para consagrá-lo, segundo a Lei de Moisés, o velho Simeão, tomando o Menino em seus braços, o proclamou “luz das nações” e “salvação dos povos” (Lc 2,30-32), profecia que vinha perfeitamente ao encontro das palavras do Arcanjo a Maria, que mandara dar ao Menino o nome de Jesus, que significa “Deus é salvação” (Lc 1,31-33). Acrescenta, porém, Simeão: “Ele será um sinal de contradição … e tu, Maria, terás a alma traspassada por uma espada” (Lc 2,34-35).
Comenta o Papa João Paulo II: “As palavras de Simeão colocam sob uma luz nova o anúncio que Maria tinha ouvido do Anjo. O Filho de Maria e com ele a sua Mãe, experimentarão em si mesmos a verdade daquela palavra de Simeão: sinal de contradição. Aquilo que Simeão diz apresenta-se como uma segunda Anunciação a Maria, uma vez que indica a dimensão histórica concreta em que o Filho realizará a sua missão, ou seja, na incompreensão e na dor. Se este outro anúncio confirma a sua fé no cumprimento das promessas divinas da salvação, também lhe revela que ela terá que viver a sua obediência de fé no sofrimento, ao lado do Salvador que sofre, e que a sua maternidade será obscura e marcada pela dor” (Redemptoris Mater, 16).
A devoção popular considera a profecia de Simeão como a primeira das sete grandes dores de Maria. Na verdade, nela se encerram todas, como seu sim na Anunciação aceitava todos os passos da missão de Jesus. Maria não demorou em perceber que a profecia de Simeão era o reverso da linda e esperançosa medalha da Anunciação. Com o filho ainda no colo, teve de refugiar-se no Egito, fazendo o percurso de 250 km de deserto inóspito, na companhia de algum caravaneiro mascate. Os artistas suavizam muito a travessia, fazendo Maria montar uma serena mula puxada pela obediência de José. Quadro nenhum poderá exprimir o que ia pelo coração da jovem mãe, carregada ao mesmo tempo de privilégios e angústias. Outros caravaneiros lhe terão levado a notícia da chacina de Belém. Como não unir a matança dos meninos de Belém com aquela executada pelo Faraó e da qual astutamente fora salvo Moisés? Como não se lembrar, se estava procurando refúgio na terra dos Faraós? Como não se lembrar das duas carnificinas, ambas de crianças masculinas inocentes, se o Menino que levava nos braços tinha uma missão muito parecida com a de Moisés, o grande profeta dos Dez Mandamentos e da libertação do povo da escravidão? O deserto era o mesmo. A mão de Deus era a mesma. Lá no deserto, encontravam-se a espera/esperança do Antigo Testamento, na recordação de Moisés, com a certeza/esperança do Novo Testamento na pessoa de Jesus Salvador. E Maria, por sua maternidade, se posta entre a antiga e a nova Aliança, como o elo essencial, único e insubstituível.
Há uma necessidade, que corre todo o Antigo Testamento e o Novo: a procura de Deus. Podemos dizer que Deus é alguém que quer ser procurado, ainda que seja ele mesmo a dar a graça do encontro. Nem Maria, santíssima e imaculada, escapou da procura, que traz sempre consigo a marca da angústia. O Evangelista a faz procurar Jesus que “se perdera” no templo (Lc 2,41-50): “Teu pai e eu aflitos te procurávamos!” (Lc 2,48). Pelos caminhos do templo, Maria ainda tinha José a seu lado. Não sei em que momento foi maior a dor de Maria: se ao procurar Jesus pelas repartições públicas (casa de Caifás, pretório de Pilatos, corte de Herodes, pátio da flagelação), se na estrada do Calvário, flagelado, coroado de espinhos, carregando a cruz. Apoiada em João, não terá Maria perguntado: “Onde estão os Apóstolos”?
A piedade popular separa a dor de Maria ao presenciar impotente a crucificação, ao tê-lo morto nos braços e ao vê-lo deposto na sepultura. Na verdade, a dor é uma só, imensa, em total consonância com o sofrimento do Filho crucificado. Na Anunciação, oferecera-se, dizendo sim à vontade de Deus. No templo, consagrara o Filho a Deus. No deserto o protegera. No Calvário, repete consciente seu sim, unindo o ofertório de si mesma ao ofertório salvador do Filho, na força e na graça do mesmo Espírito Santo da Anunciação. No martírio do Filho está a razão e o sentido do martírio da Mãe. Um vergonhoso martírio humano, que se transforma em fecundo e glorioso parto: da Cruz, passando por Maria, nasce o Corpo Místico de Cristo, que é a Igreja (Cl 1,17). Ó feliz martírio, que abriu para sempre as portas da eternidade e o coração do Pai celeste!
Conta uma velhíssima tradição que Adão estava sepultado no Calvário que, por isso mesmo, levava esse nome, que significa “caveira”. Os pintores costumam desenhar a caveira aos pés da cruz. Não importa a lenda. O que importa é que a árvore da vida do Paraíso terrestre perdido (Gn 2,9) chama-se agora “Cruz” e o que a virgem Eva perdeu com seu orgulho e sua incredulidade, a virgem Maria recuperou com sua humildade e sua fé. Da árvore da vida do paraíso, enroscada pela serpente, nasceram o desequilíbrio e a desgraça. Da árvore da vida do Calvário, da qual pendeu o corpo do Filho de Maria, nasceram a comunhão com Deus e a graça.
Ao contemplar a Mãe dolorosa, nosso coração deve ir além do sentimento de compaixão, porque de seu sacrifício doloroso, nascemos para a plenitude da vida, merecida pela Cruz de Cristo. Com a Mãe das Dores aprendemos que a salvação é fruto do sofrimento.
Por Frei Clarêncio Neotti, O.F.M
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